📸 Capítulo 1 – Primeiros Traços
A sala estava vazia, exceto pelo som suave do motor da cadeira hidráulica girando sob o peso de Derek. Ele segurava a caneta dermográfica como quem segura a própria alma — firme, mas com reverência. No papel à sua frente, linhas soltas tentavam formar algo que ainda não fazia sentido. Ele rabiscava, apagava, riscava de novo. Como se buscasse um desenho que o próprio corpo recusava a deixar sair.
Era sempre assim depois de um sonho intenso. Acordar com a imagem nítida demais pra ignorar, mas vaga demais pra explicar.
Derek olhou pela janela. Lá fora, o fim da tarde parecia em câmera lenta. O céu era uma mistura de rosa queimado e cinza-claro, e o mundo parecia suspenso, como se esperasse por algo.
Ele não sabia o quê.
Na academia de dança do outro lado da cidade, Matteo terminava o último plié do ensaio com o peito arfando. O suor descia pelas têmporas e o ar parecia rarefeito. Mas ele sorria. Um sorriso cansado, cheio. Do tipo que só aparece quando o corpo dói, mas a alma agradece.
— Tá ficando lindo, Mat — disse Alex, jogando uma garrafinha d’água na direção dele.
Matteo pegou no ar, sem perder a graça do gesto.
— Tô tentando não parecer um zumbi enquanto danço, já é um avanço.
— Você não parece um zumbi. Parece… sei lá. Um filme em preto e branco. Bonito, meio triste. Mas bonito.
Matteo riu, apertando os cadarços das sapatilhas.
— Isso foi um elogio ou uma crítica poética?
Alex deu de ombros.
— Um pouco dos dois. Igual você.
O encontro não aconteceu de forma cinematográfica. Não houve tropeço com queda, nem troca de olhares ao som de violino. Aconteceu no bar da esquina, numa noite qualquer, entre um gole de cerveja e o cheiro de tinta no ar.
Derek estava sentado sozinho, um caderno de esboços sobre a mesa, os dedos manchados de grafite e nanquim. Ele observava o movimento com desinteresse, até que viu alguém abrir a porta com um casaco amarrado na cintura, cabelo molhado de suor e um colarinho que deixava à mostra a curva fina do pescoço.
Matteo.
Ele não sabia o nome ainda. Só viu a forma com que os ombros dançavam mesmo enquanto andava, como se o corpo tivesse esquecido de parar o ensaio.
Matteo pediu uma água com gás e se sentou no banco alto, a dois assentos de Derek. Abriu uma pequena agenda e começou a escrever algo com a ponta do lápis. Sem celular. Sem distração. Só ele e o silêncio que fazia barulho.
Derek tentou não encarar. Mas falhou.
— É poesia ou desabafo? — perguntou, antes que o bom senso pudesse impedir.
Matteo levantou os olhos devagar.
— Geralmente começa como um, termina como o outro.
Derek assentiu, sem jeito.
— Eu costumo desenhar pra não explodir.
Matteo olhou para o caderno.
— Posso ver?
Derek hesitou. Mostrar seus desenhos sempre foi mais íntimo do que tirar a camiseta. Mas algo na forma como Matteo perguntou — sem invadir, sem forçar — fez ele virar o caderno devagar.
Havia traços soltos de espinhas dorsais, mãos entrelaçadas, costas arqueadas, olhos fechados. Nenhum rosto completo. Só fragmentos.
— Você desenha como se estivesse ouvindo uma música muito triste — disse Matteo, com a ponta do dedo sobre um contorno inacabado.
— Você dança como se tivesse o coração quebrado.
Matteo piscou. A surpresa foi rápida, mas nítida.
— Você me viu dançar?
— Não com os olhos. Mas… eu senti. Agora.
Matteo ficou em silêncio por alguns segundos. Então puxou o banco ao lado de Derek e se sentou ali. Sem cerimônia. Como se estivesse voltando pra casa, não conhecendo alguém pela primeira vez.
— Matteo — disse, estendendo a mão.
— Derek — respondeu, apertando. A mão dele era quente. Firme. Mas não dura.
Horas depois, na varanda do estúdio de Derek, os dois dividiam um cigarro apagado e um silêncio confortável.
Matteo girava a pulseira de couro no pulso e olhava as tatuagens no braço de Derek como quem lê um livro proibido.
— Já tatuou um bailarino?
— Não. Nunca conheci um. Pelo menos, não de verdade.
Matteo sorriu com um canto da boca.
— Então talvez seja hora.
Derek encarou.
— Talvez.
O vento passou entre os dois como um sussurro. Um daqueles que a gente só entende depois de muito tempo.
E naquele momento — sem rótulo, sem gesto grande, sem promessas — alguma coisa começou.
Algo entre linhas e lentes
.
Entre carne e dança.
Entre traço e respiração.




